segunda-feira, 2 de abril de 2012

EDGAR ALLAN POE


O GATO PRETO


Para a muito estranha embora muito familiar narrativa que estou a escrever, não espero  nem solicito crédito. Louco, em verdade, seria eu para esperá-lo, num caso em que meus  próprios sentidos rejeitam seu próprio testemunho. Contudo, louco não sou e com toda a  certeza  não  estou  sonhando.  Mas  amanhã  morrerei  e  hoje  quero  aliviar  minha  alma. 
Meu imediato propósito é apresentar ao mundo, plena, sucintamente e sem comentários,  uma  série  de  simples  acontecimentos  domésticos.  Pelas  suas  consequências,  estes  acontecimentos,  me  aterrorizam,  me  torturaram  e  me  aniquilaram.  Entretanto,  não  tentarei  explicá-los.  Para  mim,  apenas  se  apresentam  cheios  de  horror.    Para  muitos,  parecerão  menos  terríveis  do  que  grotescos.  Mais  tarde,  talvez,  alguma  inteligência  se  encontre que reduza meu fantasma a um lugar comum, alguma inteligência mais calma,  mais  lógica,  menos  excitável  do  que  a  minha  e  que  perceberá  nas  circunstâncias  que  pormenorizo com terror apenas a vulgar sucessão de causas e efeitos, bastante naturais.
Salientei-me  desde  a  infância,  pela  docilidade  e  humanidade  de  meu  caráter.  Minha  ternura  de  coração  era  mesmo  tão  notável  que  fazia  de  mim  motivo  de  troça  de  meus  companheiros.  Gostava  de  modo  especial  de  animais  e  meus  pais  permitiam  que  eu  possuísse grande variedade de bichos favoritos. Gastava com eles a maior parte do meu  tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava comida e os acariciava. Esta  particularidade  de  caráter  aumentou  com  o  meu  crescimento  e,  na  idade  adulta,  dela  extraia uma de minhas principais fontes de prazer. Àqueles que tem dedicado a afeição a  um cão fiel e inteligente pouca dificuldade tenho em explicar a natureza ou a intensidade  da recompensa que daí deriva. Há qualquer  coisa no amor sem egoísmo e abnegado de  um  animal  que  atinge  diretamente  o  coração  de  quem  tem  tido  frequentes  ocasiões  de  experimentar a amizade mesquinha e a fidelidade frágil do simples Homem.
Casei-me  ainda  moço  e  tive  a  felicidade  de  encontrar  em  minha  mulher  um    caráter  adequado ao meu. Observando minhas predileções pelos animais domésticos, não perdia  ela  a  oportunidade  de  procurar  os  das  espécies  mais  agradáveis.  Tínhamos  pássaros,  peixes dourados, um lindo cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um  belo animal, notavelmente grande, todo preto e de uma sagacidade de espantar. Ao falar  da inteligência dele, mulher que no íntimo não tinha nem um pouco de superstição, fazia  frequentes  alusões  à  antiga  crença  popular  que  olhava  todos  os    gatos  pretos  como  feiticeiras  disfarçadas.  Não  que  ela  se  mostrasse  jamais  séria  preocupação  a  respeito  desse ponto, e eu só menciono isso  final, pelo simples fato de, justamente agora, ter-me
vindo à lembrança.
Plutão - assim  se chamava o gato - era o meu preferido e companheiro. Só eu lhe dava de  comer e ele me acompanhava por toda a parte da casa, por onde eu andasse. Era mesmo  com  dificuldade  que  eu  conseguia  impedi-lo  de  acompanhar-me  pelas  ruas.  Nossa  amizade durou, desta maneira, muitos anos,  nos quais , meu temperamento geral e meu caráter  -graças  à  diabólica  esperança  -  tinham  sofrido  (coro  de  confessá-lo)  radical  alteração para  pior. Tornava-me dia a dia mais taciturno, mais irritável, mais descuidoso  dos  sentimentos  alheios.  Permiti  me  mesmo  usar  linguagem  brutal  para  com  minha  mulher. Por fim, cheguei mesmo a usar de violência corporal. Meus  bichos, sem dúvida,  tiveram que sofrer essa mudança de meu caráter. Não somente descuidei-me deles, como  os maltratava.
Quanto  a  Plutão,  porém,  tinha  para  com  ele,  ainda,  suficiente  consideração  que  me  impedia de maltratá-lo, ao  passo que não tinha escrúpulos em maltratar os coelhos, o  macaco ou mesmo o cachorro, quando, por acaso ou por afeto, se atravessavam em meu  caminho. Meu mal, contudo, aumentava, pois  que outro mal se pode comparar ao álcool?
E,  por  fim,  até  mesmo  Plutão,  que  estava  agora  ficando  velho  e,  em  consequência,  um  tanto    impertinente,  até  mesmo  Plutão  começou  a  experimentar  do  meu  mau  temperamento.
Certa  noite,  de  volta  a  casa,  bastante  embriagado,  de  uma  das  tascas  dos  subúrbios,  supus  que  o  gato  evitava  minha  presença.  Agarrei-o,  mas,  nisto,  amedrontado  com  a  minha  violência  ele  me  deu  uma  leve  dentada  na  mão.  Uma  fúria  diabólica  apossou-se  instantaneamente  de  mim.  Cheguei  a  desconhecer-me.  Parecia  que  alma  original  me  havia abandonado de repente  o corpo e uma maldade mais do que satânica, saturada de  álcool,  fazia  vibrar  todas  as  fibras  de  meu  corpo.  Tirei  do  bolso  do  colete  um  canivete,  abri,    agarrei  o  pobre  animal  pela  garganta  e,  deliberadamente,  arranquei-lhe  um  dos  olhos da órbita! Coro, abraso-me, estremeço ao narrar  a condenável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando, com  o sono desfiz os fumos da noite  de orgia, experimentei uma sensação meio de horror, meio de remorso pelo crime de que  me tornara culpado.  Mas era, quando muito, uma sensação fraca e equívoca e a alma   permanecia  insensível.  De  novo  mergulhei  em  excessos  e  logo  afoguei  no  vinho  toda  a  lembrança do meu ato. Enquanto  isso  o  gato,  pouco  a  pouco,  foi  sarando.  A  órbita  do  olho  arrancado  tinha,  é  verdade, uma horrível aparência, mas ele parecia não sofrer mais nenhuma dor. Andava  pela casa como de costume, mas, como era de esperar, fugia com extremo terror a minha  aproximação. Restava-me ainda bastante de meu antigo coração, para que me magoasse,  a princípio, aquela evidente aversão por parte de uma criatura que tinha sido outrora tão  amada por mim. Mas esse sentimento em breve deu lugar à irritação. E então  apareceu,  como para minha queda final e irrevogável, o espírito de perversidade. Desse espírito não  cuida a filosofia. Entretanto, tenho menos certeza da existência de minha alma do que de  ser  essa  perversidade  um  dos  impulsos  primitivos  do  coração  humano,  uma  das  indivisíveis faculdades primárias, ou sentimentos, que dão direção ao caráter do homem.   Quem não se achou centenas de vezes a cometer um ato vil ou estúpido, sem outra razão  senão  a  de  saber  que  não  devia  cometê-lo    ?  Não  temos  nós  uma  perpétua  inclinação  apesar  de  nosso  melhor  bom-senso,  para  violar  o  que  é  a  lei,  pelo  simples  fato  de  compreendermos que ela é a Lei? O espírito de perversidade, repito, veio a causar, minha  derrocada  final.  Foi  esse    anelo  insondável  da  alma,  de  torturar-se  a  si  próprio,  de  violentar  a  sua  própria  natureza,  de  praticar  o  mal  que  pelo  mal,  que  me  levou  a   continuar e, por fim, a consumar a tortura que já havia infringido ao inofensivo animal.

Certa manhã, a sangue-frio, enrolei em seu pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore,  enforquei-o  com  as  lágrimas  jorrando-me  dos  olhos  e  com  o  mais  amargo  remorso  no  coração. Enforquei-o porque sabia que ele me tinha amado e porque sentia que ele não  me tinha dado razão para ofendê-lo. Enforquei-o porque sabia que, assim fazendo, estava  cometendo um  pecado, um pecado mortal, que iria pôr em perigo a minha alma imortal, colocando-a  - se tal coisa fosse possível - mesmo fora do alcance da infinita misericórdia do mais misericordioso terrível Deus.
Na noite do dia no qual pratiquei essa crudelíssima façanha fui despertado do sono pelos gritos de:"Fogo!" As cortinas de minha cama estavam em chamas. A casa inteira ardia. Foi  com  grande     dificuldade  que  minha  mulher,  uma  criada  e  eu  mesmo  conseguimos   escapar  ao  incêndio.  A  destruição  foi  completa.  Toda  a  minha  fortuna  foi  tragada,  e  entreguei-me desde então ao desespero.
Não  tenho  a  fraqueza  de  buscar  estabelecer  uma  relação  de  causa    e  efeito  entre  o  desastre e a atrocidade, mas estou relatando um encadeamento de fatos e não desejo que  nem mesmo um possível elo seja negligenciado. Visitei os escombros no dia seguinte ao  incêndio. Todas as paredes tinham caído, exceto uma, e esta era de um aposento interno,  não  muito  grossa,  que  se  situava  mais  ou  menos  no  meio  da  casa  e  contra  a  qual  permanecera a cabeceira de minha cama. O estuque havia, em grande parte, resistido ali  à ação do fogo, fato que atribui a ter sido ele recentemente colocado.  Em torno dessa  parede reuniu-se compacta multidão e muitas pessoas pareciam estar examinando certa  parte especial dela, com uma  atenção muito ávida e minuciosa. As palavras "estranho,  singular!"  e  expressões  semelhantes  excitaram  minha  curiosidade.  Aproximei-me  e  vi,  como  se  gravada  em  baixo-relevo  sobre  a  superfície  branca,  a  figura  de  um  gato  gigantesco.  A  imagem  fora  reproduzida  com  uma  nitidez  verdadeiramente  maravilhosa.
Havia uma corda em redor do pescoço do animal. Ao dar, a princípio, com essa aparição, pois não podia deixar de considerá-la senão isso -  meu espanto e meu terror foram extremos. Mas, afinal, a reflexão veio em meu auxilio. O  gato,  lembrava-me, tinha sido enforcado num jardim, junto da casa.  Ao alarme de fogo,  esse  jardim  se  enchera  imediatamente  de  povo  e  alguém  deve    ter  cortado  a  corda  que  prendia o animal à árvore e o lançara por uma janela aberta dentro de meu quarto. Isto  fora  provavelmente  feito  com  o  propósito  de  despertar-me.  A  queda  de  outras    paredes  tinha comprimido a vítima de minha crueldade de encontro à massa do estuque, colocado  de pouco, cuja cal, com as chamas e o amoníaco do cadáver, traçara então a imagem tal  como a vimos.
Embora assim prontamente procurasse satisfazer a minha razão, senão de todo a minha  consciência, a respeito do surpreendente fato que acabo de narrar, nem por isso deixou  ele de causar profunda impressão na minha imaginação. Durante meses, eu não me pude  libertar do fantasma do gato e, nesse período, voltava-me ao espírito um  vago sentimento  que parecia remorso, mas não era. Cheguei a ponto de lamentar a perda do animal e de  procurar, entre as tascas ordinárias que eu agora habitualmente frequentava, outro bicho  da mesma espécie e de aparência um tanto semelhante com que substituí-lo.
Certa noite, sentado, meio embrutecido, num antro mais que infame, minha atenção foi  de súbito atraída para uma coisa preta que repousava em cima de um dos imensos barris  de  genebra  ou  de  rum  que  constituíam  a  principal  mobília  da  sala.  Estivera  a  olhar  fixamente para o alto daquele barril, durante alguns minutos, e o que agora me causava  surpresa era o fato de que não houvesse percebido mais cedo a tal coisa ali situada.
 Aproximei-me  e  toquei-a  com  a  mão  um  gato  preto,  um  gato  bem  grande,  tão  grande  como Plutão, e totalmente semelhante a ele, exceto em um ponto. Plutão não tinha pêlos  brancos em  parte alguma do corpo, mas este gato tinha uma grande, embora imprecisa,  mancha branca cobrindo quase toda a região do peito.
Logo  que  o  toquei,  ele  imediatamente  se  levantou,  ronronou  alto,  esfregou-se  contra  minha mão e pareceu satisfeito com o meu carinho. Era pois, aquela a criatura mesma que eu procurava. Imediatamente, tentei comprá-lo ao taverneiro, mas este disse que não  lhe pertencia o animal, nada sabia a seu respeito e nunca o vira antes.
Continuei  minhas  carícias,  e,  quando  me  preparei  para  voltar  para  casa,  o  animal  deu  mostras de querer acompanhar-me. Deixei que assim o fizesse, curvando-me, às vezes, e  dando-lhe  palmadinhas,  enquanto    seguia.  Ao  chegar  à  casa,  ele  imediatamente  se  familiarizou com ela e se tornou desde logo grande favorito de minha mulher.
 De minha parte, depressa comecei a sentir despertar-se em mim antipatia  contra ele. Isto  era, precisamente, o reverso do que eu tinha previsto, mas - não sei como ou por quê -  sua evidente amizade por mim antes me desgostava e aborrecia. Lenta e gradativamente  esses sentimentos de desgosto e aborrecimento se transformaram na amargura do ódio.
Evitava o animal; certa sensação de vergonha e a lembrança de minha antiga crueldade  impediam-me de maltratá-lo fisicamente.
 Durante  algumas  semanas  abstive-me  de  bater-lhe  ou  de  usar  contra  ele  de  qualquer  outra violência; mas gradualmente, bem gradualmente, passei a encará-lo com indizível  aversão  e  a  esquivar-me,  silenciosamente,  à  sua  odiosa  presença,  como  a  um  hálito  pestilento.
 O que aumentou sem dúvida meu ódio pelo animal foi a descoberta, na manhã seguinte à  em que o trouxera para casa, de que  como Plutão, fora também privado de um de seus  olhos. Essa  circunstância, porém, só fez aumentar o carinho de minha  mulher  por ele;  ela,  como  já  disse,  possuía,  em  alto  grau,  aquela  humanidade  de  sentimento  que  fora  outrora  o  traço  distintivo  e  a  fonte  de  muitos  dos  meus  mais  simples  e  mais  puros  prazeres.
Com  a  minha  aversão  àquele  gato,  porém,  sua  predileção  por  mim  parecia  aumentar.  Acompanhava meus passos com uma pertinácia que o leitor dificilmente compreenderá.
Em  qualquer  parte  onde  me  sentasse,  enroscava-se  ele  debaixo  de  minha  cadeira  ou   pulava sobre meus joelhos, cobrindo-me com suas carícias repugnantes. Se me levantava  para andar, metia-seentre meus pés, quase a derrubar-me, ou cravando suas longas e  agudas garras em minha  roupa, subia dessa maneira até o meu peito. Nessas ocasiões,  embora tivesse o desejo ardente de matá-lo com uma pancada, era impedido de fazê-lo,  em parte por me lembrar de meu crime anterior, mas principalmente - devo confessá-lo  sem demora -, por absoluto pavor do animal.
Esse  pavor  não  era  exatamente  um  pavor  de  mal  físico  e,  contudo,  não  saberia  como  defini-lo de outra forma. Tenho quase vergonha de confessar - sim, mesmo nesta cela de  criminoso, tenho quase vergonha de confessar que o terror e o horror que o animal me  inspirava  tinham  sido  aumentados  por  uma  das  mais  simples    quimeras  que  seria  possível  conceber.  Minha  mulher  chamara  mais  de  uma  vez  minha  atenção  para  a  natureza da marca de pêlo branco de que falei e que constituía a única diferença visível  entre o animal estranho e o que eu havia matado.  O leitor há  de recordar-se que  esta  mancha,  embora  grande,  fora  a  princípio  de  forma  bem  imprecisa.  Mas  por  leves  gradações, gradações quase imperceptíveis e  que, durante muito tempo, a razão forcejou  para rejeitar como imaginárias, tinha afinal assumido uma rigorosa precisão de contorno.
Era agora a reprodução de um objeto que tremo em nomear e por isso, acima de tudo, eu  detestava  e  temia  o  monstro  e  ter-me-  ia  livrado  dele,  se  o  ousasse.  Era  agora,  digo,  a  imagem de uma  coisa horrenda, de uma coisa apavorante. . . a imagem de uma forca!
Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de  agonia e de morte!

E então  eu  era  em  verdade  um  desgraçado,  mais  desgraçado  que    a  própria  desgraça humana. E um bronco animal, cujo companheiro  eu tinha com desprezo destruído, um bronco  animal  preparava  para  mim  -  para  mim,  homem  formado  à  imagem  do  Deus Altíssimo - tanta angústia intolerável! Ai de mim! Nem de dia nem de noite era-me dado mais gozar a bênção do repouso! Durante o dia, o bicho não me deixava um só momento e, de  noite,  eu  despertava,  a  cada  instante,  de  sonhos  de  indizível  pavor,  para  sentir  o quente hálito daquela coisa no meu rosto e o seu enorme peso, encarnação de pesadelo, que eu não tinha forças para repelir, oprimindo eternamente o meu coração!
Sob a pressão de tormentos tais como estes, os fracos restos de bondade que  haviam em mim  sucumbiram.  Meus  únicos  companheiros  eram    os  maus  pensamentos,  os    mais negros  e  maléficos  pensamentos. O  mau-humor  de  meu  temperamento  habitual aumentou,  levando-me  a  odiar  todas  as  coisas  e  toda  a  humanidade.  Minha  resignada esposa,  porém,  era  a  mais  constante  e  mais  paciente  vítima  das    súbitas,  frequentes  e indomáveis explosões de uma fúria a que eu agora me abandonava cegamente.
 Certo dia ela me acompanhou, para alguma tarefa doméstica, até a adega do velho prédio que nossa pobreza nos compelira a ter de habitar. O gato desceu os degraus seguindo-me e quase  me  lançou  ao  chão,  exasperando-me  até  a  loucura.  Erguendo  um  machado  e esquecendo  na  minha  cólera  o  medo  pueril  que  tinha  até  ali  sustido  minha  mão, descarreguei um golpe no animal, que teria,  sem dúvida, sido instantaneamente fatal se eu o houvesse assestado como desejava.
Mas  esse  golpe  foi  detido  pela  mão  de  minha  mulher.  Espicaçado  por  esta  essa intervenção, com uma raiva mais do que demoníaca, arranquei meu braço de sua mão e enterrei o machado no seu crânio. Ela caiu morta imediatamente, sem um gemido.
 Executado tão horrendo crime, logo e com inteira decisão entreguei-me à tarefa de ocultar o corpo. Sabia que não podia removê-lo da casa nem de dia nem de noite, sem correr o risco  de  ser  observado  pelos  vizinhos.  Muitos  projetos  me  atravessavam  a  mente.  Em dado momento pensei em cortar o cadáver em pedaços miúdos e queimá-los. Em outro, resolvi cavar uma cova para ele no chão da adega. De novo, deliberei lançá-lo no poço do pátio,  metê-lo  num  caixote,  como  uma  mercadoria,  com  os  cuidados  usuais,  e  mandar um carregador retirá-lo da casa. Finalmente,  detive-me no considerei um expediente bem melhor  que  qualquer  um  destes.  Decidi  emparedá-lo  na  adega,  como  se  diz  que  os monges da Idade média emparedavam suas vítimas.
 Para  um  objetivo  semelhante  estava  a  adega  bem  adaptada.  Suas  paredes  eram  de construção  descuidada  e  tinham  sido  ultimamente  recobertas,  por  completo,  de  um reboco grosseiro, cujo endurecimento a umidade da atmosfera impedira. Além disso, em uma das paredes havia uma saliência causada por uma falsa chaminé ou lareira  que fora tapada  para  não  se  diferençar  do  resto  da  adega.  Não  tive  dúvidas  de  que  poderia prontamente retirar os tijolos naquele ponto, introduzir o cadáver e emparedar tudo como antes, de modo  que olhar algum pudesse descobrir qualquer coisa suspeita. E  não me enganei  nesse  cálculo.  Por  meio  do  um  gancho,  desalojei  facilmente  os  tijolos  e,  tendo cuidadosamente depositado o  corpo contra a  parede interna, sustentei-o nessa  posição, enquanto,  com  pequeno  trabalho,  repus  toda  a  parede  no  seu    estado  primitivo.  Tendo procurado  argamassa,    areia  e  fibra,  com  todas  as  precauções  possíveis,  preparei  um estuque que não  podia  ser distinguido  do  antigo e  com ele,  cuidadosamente, recobri  o novo entijolamento. Quando terminei, senti-me satisfeito por ver que tudo estava direito.
A parede  não  apresentava  a  menor  aparência  de  ter  sido  modificada.  Fiz  a  limpeza  do chão,  com  o  mais  minucioso  cuidado.  Olhei  em  torno  com  ar  triunfal  e  disse  a  mim mesmo: "Aqui, pelo menos pois, meu trabalho não foi em vão!"
Tratei,  em  seguida,  de  procurar  o  animal  que  fora  causa  de  tamanha  desgraça,  pois resolvera  afinal  decididamente  matá-lo.  Se  tivesse  podido  encontrá-lo  naquele  instante, não  poderia  haver  dúvida  a  respeito  de  sua  sorte.  Mas  parecia  que  o  manhoso  animal ficara alarmado com a violência de minha cólera anterior e evitava  arrostar a minha raiva do momento.
É impossível  descrever  ou  imaginar  a  profunda  e  abençoada  sensação  de  alívio  que  a ausência da detestada criatura causava no meu íntimo. Não me apareceu durante a noite.
E assim,  por  uma  noite  pelo  menos,  desde  que  ele  havia  entrado  pela  casa,  dormi profunda e tranquilamente. Sim, dormi, mesmo com o peso de uma morte na alma.

O segundo e o terceiro dia se passaram e, no entanto, o meu carrasco não apareceu. Mais uma vez respirei como um livre. Aterrorizado, o monstro abandonara a casa para sempre!
Não  mais o veria! Minha ventura era suprema! Muito pouco me perturbava a culpa de minha  negra  ação.  Poucos  interrogatórios  foram  feitos  e  tinham  sido  prontamente respondidos.  Dera-se  mesmo  uma    busca,  mas,  sem  dúvida,  nada  foi  encontrado.
Considerava assegurada a minha futura felicidade. No quarto dia depois do crime, chegou, bastante inesperadamente  à casa um grupo de policiais,  que  procedeu  de  novo  a  investigação  dos  lugares.  Confiando,  porém,  naimpenetrabilidade  do  meu  esconderijo,  não  senti  o  menor  incômodo.  Os  agentes ordenaram-me  que  os  acompanhasse  em  sua  busca.  Nenhum  escaninho  ou  recanto deixaram inexplorado. Por fim, pela terceira ou  quarta vez, desceram à  adega. Nenhum músculo meu estremeceu. Meu coração batia calmamente, como o de quem dorme o sono da  inocência.  Caminhava  pela  adega  de  ponta  a  ponta;  cruzei  os  braços    no  peito  e passeava  tranqüilo  para  lá  e  para  cá.  Os  policiais  ficaram  inteiramente  satisfeitos  eprepararam-se  para  partir.  O  júbilo  de  coração  era  demasiado  forte  para  ser  contido.
Ardia por dizer ao menos uma palavra, a modo de triunfo, e para tornar indubitavelmente segura a certeza neles de minha inculpabilidade.
 - Senhores -  disse, por fim, quando o grupo subia a escada - sinto-me encantado por ter desfeito suas suspeitas. Desejo a todos saúde e um pouco mais de cortesia. A propósito, cavalheiros, esta é  uma casa muito bem construída. . . (no meu violento desejo de dizer alguma coisa com desembaraço, eu mal sabia o que ia falando). Posso afirmar que é umacasa excelentemente bem construída. Estas paredes.. . já vão indo, senhores?. . . estas paredes  estão  solidamente  edificadas. Por  simples  frenesi  de  bravata,  bati  pesadamente com uma bengala que tinha na mão justamente naquela parte do entijolamento, por trás do qual estava o cadáver da mulher de meu coração.
Mas praza a Deus proteger-me e livrar-me das garras do demônio! Apenas  mergulhou no silêncio a repercussão de minhas pancadas e logo respondeu-me uma voz do túmulo. Um gemido,  a  princípio  velado  e  entrecortado  como  o  soluçar  de  uma  criança,  que  depois, rapidamente se avolumou, num grito prolongado, alto e contínuo, extremamente anormal e inumano, um urro, um guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, como só do Inferno se pode erguer a um tempo, das gargantas dos danados na sua agonia, e dos demônios que exultam na danação.
Loucura  seria  falar  de  meus  próprios  pensamentos.  Desfalecendo,  recuei  até  a  parede oposta. Durante um minuto, o grupo que se achava na escada ficou imóvel, no paroxismo do  medo  e  do  pavor.  Logo  depois,  uma  dúzia  de  braços  robustos  se  atarefava  em desmantelar  a  parede.  Ela  caiu  inteiriça.  O  cadáver,  já  grandemente  decomposto,  e manchado  de  coágulos  de  sangue,  erguia-se,  ereto,  aos  olhos  dos    espectadores.  Sobre sua  cabeça,  com  a  boca  vermelha  escancarada,  o  olho  solitário  chispante,  estava assentado o horrendo animal cuja astúcia me induzira ao crime e cuja voz delatora me havia apontado ao carrasco.
Eu havia emparedado o monstro no túmulo!

Edgar Allan Poe.

http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000145.pdf